
Povoando minha imaginação com promessas de uma liberdade feroz e totalmente desmedida, On the road era um daqueles livros que mantemos em nossas listas de “próximas leituras” eternamente e assim o seria caso um amigo meu (o também falante desse blog, Gabriel Ribeiro) não o tivesse comprado e, à seguir, me emprestado. E o que se seguiu durante o tempo em que eu passei lendo a considerada bíblia hippie de Jack Kerouac foram algumas semanas angustiantes acompanhando o roteiro de indas e vindas desse cara pela rota 66 dos Estados Unidos em busca de algo. Algo que ele não sabia o que era, algo que não era físico ou tangível, mas que era tão forte que o fez agüentar agruras e passar por diversas dificuldades nessa busca, quase sempre acompanhado de seu companheiro, Neal Cassady. “Eu não tinha nada a oferecer a ninguém a não ser minha própria confusão” diz Jack, em uma das passagens mais marcantes.
O que me impressiona em On the road não é a aventura em si – para mim, talvez tomado pela mentalidade tipicamente burguesa em que minha mente foi moldada, Jack Kerouac e todos os seus companheiros eram grandes irresponsáveis. Neal Cassady deixou, pelo menos no espaço de tempo em que se passa On the Road, quatro filhos espalhados pelo território norte-americano sem dar conta de nenhum. Mas o que me encanta, sobretudo, e a fé que essa geração beat colocava em um objetivo de vida cuja primazia era a liberdade sem conseqüências, uma liberdade que não iria acarretar em nada senão si mesma. Jack e Neal, assim como Ginsberg e os outros, eram escritores, poetas, mas ao mesmo tempo lavadores e guardadores de carro, marinheiros, carregadores. Assumiam funções temporárias sem nunca terem se submetido à um gabinete de professor universitário ou uma redação de jornal (e, em grande parte, os expoentes
da geração beat se conheceram na Universidade de Columbia) justamente porque sabiam serem homens em movimento, livres.Sua literatura não surge aí como objeto de consumo intelectual, fruto de reflexão ou de um conhecimento adquirido, mas sim como o registro dessa liberdade, como se a única forma de aprisioná-la fosse justamente nas páginas de um livro. On the road nada mais é do que um diário de bordo. Foi escrito, imagino eu, em diários, cadernos rotos e amassados e milhares de guardanapos de lanchonetes de estrada e posteriormente transcritos por Kerouac num fôlego só durante dias à fio em que esteve trancado num apartamento (o que, por vezes torna sua leitura bastante cansativa e maçante).
Sobretudo, as coisas se amarraram para mim após ler esse livro. A liberdade de que a geração da década de 60 e 70 falava foi uma herança dos beats. Essa busca, entretanto parece infundada em um mundo onde tudo que fazemos precisa ter uma motivação. Desobedecer ao que chamamos de certo implica apenas numa transgressão, mas desobedecer a vida que chamamos de certa implica, aí sim, numa obra de arte. “E na época, eu tinha muitas fantasias românticas, e suspirei diante da minha sina. A verdade da coisa é, você morre, tudo que você faz é morrer, e contudo você vive, sim, você vive, e isso não é uma mentira” .

Janis Joplin canta um verso em Kozmic Blues que diz: Time keeps movin' on/ Friends they turn away /I keep movin' on/ But I never found out why. De certo modo, o mesmo acontece com Kerouac à medida em que, após sua primeira viagem, ele não consegue mais parar. Como uma árvore que, após arrancada do solo, não consegue achar espaço para suas vastas raízes, permanecer em Nova York e levar uma vida dita “comum” é inaceitável, e ele parte. Passa um bom tempo de sua juventude e início da vida adulta partindo, na estrada. "Nossa bagagem maltratada fora empilhada na calçada novamente; nós tínhamos mais caminhos para percorrer. Mas não importa, a estrada é a vida."
Deste modo, poderia dizer que On the Road é o registro do ponto alto da vida de Jack Kerouac. Enquanto houvesse uma estrada a ser percorrida, esse autor que é genuinamente um viajante escritor e não
o contrário talvez não parasse. Mas de fato parou e a vida que se seguiu para Kerouac não foi nem um pouco glamourosa – o beat terminou seus dias vítima de uma cirrose, morando em um apartamento pequeno com a mãe. Para uma sociedade que vivia intensamente o American way of life, Keroauc pecou e pagou um preço por isso. Mas teve, e isso poucos artistas contemporâneos seus tiveram, uma vida que servia de matéria-prima para alimentar sua arte. "Qual é a sua estrada, homem? A estada do garoto místico, a estrada do homem louco, a estrada do arco-iris, a estrada dos peixes, qualquer estrada. Há uma estrada em qualquer lugar para qualquer pessoa em qualquer circunstância". Fica, entretanto, a pergunta: vale a pena? E para essa, um outro escritor mais antigo e menos americano já havia dado a resposta há muito tempo.








